Sobre o Ator
Yan, alma para os índios. Estaria ela perdida, esquecida, ou em simples e imperceptível transformação? Uma transformação que por não ser muito percebida, vem a ser perigosa. Como lutar contra o que sequer percebemos, contra o que não se sabe? Será possível ter consciência daquilo que não se percebe?
A arte trabalha antes de mais nada com a percepção. Seu poder principal não está em o que dizer, mas no como. Quando atinge a percepção, é que ela revoluciona. É no inconsciente que encontramos nossa particularidade, nossa individualidade, mas também os elos que nos atam uns aos outros. E a arte, quando logra atingir nosso inconsciente, nossa percepção profunda, vasculha um universo equiparável ao dos sonhos, dos pesadelos, como desejou Artaud.
Mas para atingir este universo interior, subjetivo, perceptivo, a arte precisa fazer uso de instrumentos materiais objetivos. Com freqüência se diz que o instrumento de trabalho do ator é o seu corpo. Falso. O instrumento de trabalho do ator não pode ser o corpo. Não podemos transformar um defunto em ator. O corpo não é algo, e nossa pessoa algo distinto. O corpo é a pessoa. A alma o anima, mas sem ele não seríamos pessoas, mas anjos. Tampouco é o corpo vivo o instrumento de trabalho do ator. A arte é algo que está em vida, ou seja, algo que irradia uma vibração, uma presença. É o corpo-em-vida, como prefere Eugenio Barba, o instrumento do ator.
Existem, no entanto, como nota o próprio Barba, pelo menos duas dimensões deste corpo-em-vida: a dimensão física e mecânica e a dimensão interior. As duas formam uma unidade. Esta unidade, no âmbito do trabalho do ator, nem sempre é ou pode ser trabalhada como tal. Ela deve ser vista não como ponto de partida, mas como ponto de chegada. Pode-se, e é muitas vezes necessário, trabalhar estas dimensões separadamente. No entanto, não se pode perder de vista a unidade.
Trabalhar tão somente a dimensão física e mecânica seria formar jovens belos e fortes, mas não necessariamente atores; trabalhar apenas a dimensão interior poderia ser terapêutico, mas tampouco formaria atores. Uma não existe sem a outra, mesmo que o enfoque possa estar momentaneamente concentrado em uma ou outra destas duas dimensões. A imagem usada por Artaud é novamente bem vinda: atletas afetivos.
Se o corpo não é tão somente corpo , mas corpo-em-vida, então ele é o canal por meio do qual o ator entra em contato com aspectos distintos de seu ser gravados em sua memória. O corpo não tem memória, ele é memória, como disse Grotowski. Trabalhar um ator é, sobretudo e antes de mais nada, preparar seu corpo não para que ele diga, mas para que ele permita dizer. Não mostrar o que ele é, mas revelar o que, por meio dele, se descobre ser. Ser artista é antes de mais nada se predispor a revelar. A revelação pede generosidade e coragem. Uma máscara pode mesquinha e covardemente esconder, ou revelar, dilatando o que não se vê. Depende de como ela é usada. Um corpo também. Podemos nos esconder atrás de nosso corpo, de maneira a deixá-lo belo, e isto não ser senão uma forma de escamotear o que temos medo de ser ou demonstrar. Ou, ao contrário, por meio do corpo podemos revelar o que somos e sentimos. O artista descobre por meio de sua arte o sentido das coisas.
Ele não diz o sentido, nos permite descobrir um sentido. E, paradoxalmente, este sentido não está em outro lugar se não em nós mesmos. O artista e sua arte abrem, portanto, caminhos que nos permitem entrar em contato com nossa própria percepção profunda, com algo que existe em nós e está adormecido, esquecido. A arte não é senão uma viagem para dentro de nós mesmos, um reatar contato com recantos secretos, esquecidos, com a memória.
A busca do ator, assim como a de todo artista que quer algo mais do que um simples reconhecimento social e econômico, é a incontestável tentativa de reavivar a memória. A verdadeira técnica da arte de ator é aquela que consegue esculpir o corpo e as ações físicas no tempo e no espaço, acordando memórias, dinamizando energias potenciais e humanas, tanto para o ator como para o espectador.